
A MUTAÇÃO GENÉTICA COMPORTAMENTAL VIRAL
E A PERDA DO PALADAR DO BEIJO
Ricardo França de Gusmão
23.12.2020
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— Doutor, o beijo da minha esposa está insípido. Não sei o que está acontecendo, afinal, estamos casados apenas há seis meses.
— Você não sente nada?
— Nem quando ela chupa bala de hortelã antes, doutor. Só o manejo da língua mole dela. Eu, sequer salivo. O senhor teria alguma pastilha disruptiva?
— Vamos com calma. Existe algum tipo de efeito colateral? Tipo algum afã no senhor, na fase do pré-beijo, durante-beijo e pós-beijo??
— Doutor, é como falei. Só me vem em mente a figura de um molusco. E vivo, pois se mexe e se esfrega na minha língua.
— E quando começou isso?
— Bom... Acho que foi depois que fui contaminado pela SARS-CoV-2...
— É comum perder o paladar dos alimentos... Mas quanto ao beijo. É o primeiro relato que tenho conhecimento. O que é preocupante.
— Preocupante?
— Sim, meu caro. É sinal de que o vírus sofreu mutações e pode estar atingindo agora a libido.
— Será doutor?
— Sim. É quase certo. Você fica com pau duro quando a beija?
— Antigamente sim. Mas agora, infelizmente não, doutor...
— Nem ela palmeando?
— Doutor! Essa informação é íntima! Faz parte da consulta?
— Preciso de informações para fazer um diagnóstico mais próximo da realidade. Por isso, sua colaboração é necessária.
— Ok. Não, doutor. Nem apalpando.
— Hummmmm....
— Hummmmm....??/ O que, doutor?
— Quando você teve Covid —19?
— Há umas cinco semanas...
— Hummmmm...
— Doutor, o senhor poderia parar de 'mugir' e falar português claro?
— Minha preocupação é que esse sintoma enigmático não seja sintomático, mas permanentemente tácito.
— Sei. E?
— Bom. Que tenha se tornado permanente nas partes sensitivas sublinguais da sua língua.
— E???
— Nesse caso você nunca mais poderá sentir o dom do prazer do beijo dela ou de qualquer outra mulher.
— Sério doutor? Só o beijo?
— Nesse caso não só o beijo. Mas de todo tipo de linguada. E isso vale também para o corpo feminino em sua totalidade.
— E o que eu farei agora, doutor?
— Vou recomendá-lo a um neurologista para um mapeamento cerebral. Talvez você tenha que passar por uma fisioterapia mental.
— Fisioterapia mental???
— Sim. Uma reeducação. Para conviver com o fato de que, daqui para frente, para você, todos os beijos serão desgostosos.
— Porra, doutor! Esse vírus fez isso??
— Bem provável. Como ele é um parasita, é ele quem deve estar recebendo os estímulos sexual e erótico dos beijos da sua mulher.
— Que filho de uma puta do cacete!
— Calma. Não adianta revolta. Ciúmes não irá adiantar!
— Doutor, não estou com ciúmes! Estou puto!
— Também não adianta. Nem uma coisa nem outra. Certamente você não é nem será o primeiro.
— De que?
— De ser corno. Acontece. Ou você aprende a conviver com esse fato, ou pede o divórcio.
— Só faltava essa. Um 'víruszinho' roubando os beijos que eu dou na minha mulher!
— Roubando não. Compartilhando. E se ela ainda não pegou o coronavírus ainda, é porque é imune.
— E aí?
— Aí que agora é ela e ele. Você é o terceiro da relação.
— Desgraçado!!! Doutor, me vacina logo, vai!!! Pode ser com todas as disponíveis!
— Infelizmente não vai dar.
— Por que???
— Bom... Em prol da ciência seu caso deve ser observado. Ser mais estudado. Pois é um efeito de contágio inusitado.
— E quanto tempo levaria esse estágio de observação?
— Uns 12 meses.
— Doutor!?:?? Um ano chifrudo???
— Sim. Galhudo. Vou receitar pelo menos 40 beijos de língua diários com coleta de residuais de saliva antes e depois dos beijos.
— Tá de sacanagem comigo!
— Não. Infelizmente, temos que analisar a evolução da satisfação viral. E se isso atua na matemática do desvio padrão da sua disseminação.
— Disseminação?
— Sim. Sua mulher tem amantes?
— Doutor!???
— Por favor, sem chiliques. Sou um cientista e estou fazendo o meu trabalho.
— Não doutor... Não que eu saiba.
— Faz sentido. O corno geralmente é o último a saber...
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