top of page

“BRUMADINHO É SÓ UMA ‘MERDINHA’ NO MAPA”: DIZ PROFESSOR DE PÓS-GRADUAÇÃO DE MARKETING DIGITAL

  • Foto do escritor: Admin
    Admin
  • 25 de jan. de 2022
  • 4 min de leitura

Créditos: Marcela Nicolas, Tamires Aquino e Região Episcopal Nossa Senhora do Rosário


TRAGÉDIA COMPLETA 3 ANOS. NENHUM PRESO


Ricardo França de Gusmão

25.1.2022


Saudações ambientais. Escrevo o primeiro artigo da coluna SUMAÚMA. Um espaço comprometido com causas humanitárias, ambientais e Direitos Humanos ‘bordados’ entre fatos e literatura. O tema deste artigo, cuja importância se faz premente (e permanente), visa registrar os exatos três anos da tragédia de Brumadinho (MG), ocorrido no dia 25 de janeiro de 2019, exatamente hoje. Com o rompimento da barragem de uma área de mineração das empresas Vale e Tuv Sud, no Córrego do Feijão, moradores e trabalhadores foram ‘engolidas’ pela lama, num total de 270 mortos (incluindo desaparecidos até hoje).

.


Durante esta semana, indígenas de várias etnias, moradores da cidade, realizaram diversas manifestações pedindo Justiça, na III Romaria pela Ecologia Integral a Brumadinho: até hoje, ninguém foi condenado pelos crimes: 270 homicídios. Acompanhei, durante todo o dia, a cobertura das manifestações, em vídeos e textos, feitas pelos repórteres do Conselho Indianista Missionário (CIMI). E, apenar de ser impossível para eu mensurar a dor e a indignação dos familiares e sobreviventes – eu não estava lá – vivi uma experiência tão repugnante sobre a tragédia que me fez entender a dimensão da falta de humanidade daqueles que a provocaram ou que defenderam a multinacional da mineração e jogaram ainda mais lama sobre a memória dos mortos.

.

Estou aposentado há alguns anos devido ao esgotamento psicológico causado por assédio moral no trabalho, fato que me levou à aposentadoria precoce pelo INSS. Por que escrevo isto? Porque grande parcela da humanidade é sórdida. Aconselhado por psicólogos, entrei numa pós-graduação para ocupar o tempo e me socializar, pois o estresse deflagrara o gatilho de uma bipolaridade crônica, que me levou ao auto-isolamento. Resolvi cursar Marketing Digital, numa universidade particular localizada em Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro.

.

Estava animado. Antes mesmo da primeira aula já havia comprado livros. Achava uma área criativa e queria aplicar o MKT Digital no Terceiro Setor, como voluntário, se tivesse oportunidade. Mas... Assim como a barragem de Brumadinho engoliu uma cidade e a paisagem além dela pelo caminho da lama, eis que o ‘fantasma’ de Brumadinho (e seus crápulas) vieram assombrar o meu sonho.

.

E começou com o professor de MKT Digital, gingando de um canto ao outro enquanto gaguejava ao tentar ministrar uma aula notadamente não planejada, tocou na tragédia de Brumadinho, ano do início daquela pós-graduação. E, gabando-se ao dizer que trabalhou em departamentos de marketing de diversas empresas, em determinado momento ele pegou um caderno, abriu numa folha em branco, e simulando estar vendo um mapa, com o dedo em riste, apontou para a celulose e veio com a seguinte bravata:

.

“Brumadinho é uma merda no mapa. Vocês acham que a Vale merece o que estão fazendo com ela? O que a mídia está fazendo? Ela gera milhares de empregos. O que seria Brumadinho sem ela? E, mesmo assim, por causa desse ‘acidentezinho’, ainda nem acharam todo mundo, estão crucificando a empresa. É nessa hora que entra a gente: o MKT Digital!”.

.

Quando ouvi isso, já havia pago a matrícula e a primeira parcela da mensalidade. Meu estômago embrulhou. Rangi os dentes. Então pensei: “calma, Ricardo”. Sim. Consegui. Foi quando outros dois alunos, daqueles que querem indicação para estágio e/ou emprego, reforçaram a narrativa do professor marqueteiro nazista.

.

“É mesmo, professor, o meu primo é um dos assessores de imprensa da Vale. Ele me disse que a imprensa mente pra caramba e que não é nada disso que está saindo na televisão”, disse uma aluna que fazia parte de um dos grupinhos já formados da turma. Veio outra: “A minha amiga trabalha no RH da Vale. Ela falou que lá na empresa todos estão muito chocados e arrasados”, amenizou.

.


Foi a deixa que o ‘prof-nazi’ queria. “Não falei? Coitada dessa empresa. E coitado dos profissionais de marketing que, a essa hora, devem estar perdidos sem saber por onde começar para recompor a reputação dela. Mas é isso o que vamos aprender nesta disciplina”, sentenciou, o professor sem planejamento.

.

Criou a polêmica, passou o tempo. Disse que deu aula. Mas foi quase isso que gerou o meu estresse e que me levou a aposentadoria. A hipocrisia da máquina. O oportunismo dos incapazes. O poder derretido que caminha pisando em cadáveres. Foi a minha vez.

.

Levantei o dedo. Ele me olhou e imaginou que eu tinha uma certa cara de “comunista”. Fingiu que não percebeu e continuou a aula, mudou de assunto para outra frivolidade. Ainda nada de conteúdo programático. Só ‘historinhas’. Na segunda oportunidade, levantei novamente o dedo. Não dei chance para ele desviar o olhar. Apontei a metralhadora da argumentação e disparei contra ele, contra a turma e contra o tal do Marketing Digital.

.

“Quem é o senhor e quem são vocês para dizer que “Brumadinho é uma merda no mapa?”? Quem??? É a mãe de vocês que está lá agora sob cinco metros de lama tóxica? Que tipo de ética profissional é essa? Que ensinamento de merda é esse, professor? Na minha opinião, a sua exposição é uma merda de aula. Pra mim, acabou por aqui. Eu só tenho pena da população do Rio de Janeiro caso alguma empresa vier a contratar algum aluno, seu discípulo, desta turma. Serão uns merdinhas de marketeiros”. Pronto. Falei. No dia seguinte recebi um telefonema da coordenação do curso propondo a minha desistência do curso, com a devolução do investimento feito até então. Aceitei.

.

Hoje, cerca de três anos depois, em respeito às vítimas, sobreviventes, familiares e trabalhadores da tragédia de Brumadinho, desejo Justiça e paz. A mesma paz que eu sinto agora por ter feito a minha parte. Me indignar contra a mercantilização e o marketing da dor. E me alegro por mais uma vez, na minha vida, ter feito a escolha mais dolorida. Mas a certa.



 
 
 

Comentários


bottom of page