O “IMAGINADOR” X O DELEGADO E O CÓDIGO PENAL DA ERA VARGAS

Ricardo França de Gusmão

1.6.2022

— Muito bem, contador de histórias... Foram meses de investigação e monitoramento até que conseguimos coletar um robusto material comprobatório. Após seu depoimento você vai pra tranca, entendeu?

— Investigação? Monitoramento? Não est ou entendendo, senhor delegado. Qual é a acusação?

— Quem pergunta aqui sou eu. Você pergunta quando ei permitir. Estamos acertados?

— Tudo bem, doutor. O que o senhor quer saber?

— Qual é a sua profissão?

— Sou imaginador.

— Imaginador? E o que faz um imaginador. Acredito que ele venha a imaginar?

— Sim senhor. Eu imagino o tempo todo. E não é de agora não.

— E o que o senhor imagina?

— Aí varia. Pode ser doce ou limão. Inverno ou verão. Comida ou fome. Coisas do dia a dia. Imagino também semente, árvore, monstros mitológicos, guerras sem heróis e heróis sem guerras. Policiais, bandidos, padres com gravatas. Já imaginei até mesmo a imaginação solitária no flutuar do astronauta...

— O senhor não acha que imaginação demais não? E isso lá é trabalho, por acaso? Ficar imaginando no banco da praça...? E às vezes deitado na grama?

— Doutor delegado... O senhor não imagina o quanto imaginar me dá trabalho. Imaginar consiste em recriar um mundo que não existe e ressignificá-lo. Ter que decorá-lo, ou descrever ou pintá-lo. Pois imaginar sem comprovação registrada da astúcia imaginada não fermenta significância.

— Pois na minha avaliação imaginador é paradoxo de vadiagem. Explica melhor esse seu “trabalho”... De “imaginador”...

— Eu imagino coisas usando a imaginação. O senhor tem imaginação, doutor delegado?

— Mas é claro que não! Sou uma autoridade! Um representante da Lei. Defensor da sociedade, da moral e dos bons costumes e dos homens de bem! E não um vagabundo vadio! Sou pragmático. E estou nesta cadeira para defender a população de desocupados como você!

— Seu doutor... Lá na praça tem mais gente como eu... Mas que não sabem usar a imaginação. Todos eles me falaram que ficaram desempregados... Mas eu não. O meu emprego é a imaginação... Mas posso garantir ao senhor que, apesar de maltrapilhos, são pessoas de bem... E se não fossem as pessoas boas que passam e nos dão comida e cobertores... Não sobreviveríamos. Nos alimentamos de empatia, e de compaixão. Elas também são pragmáticas, nesse sentido, doutor?

— Ora que bobagem! Isso é conversa de comunista. Se vocês pudessem usariam a imaginação para tomar a minha casa! Seus ideológicos de merda!

— Mas delegado... Se eu vou para a tranca por escrever poesia... O senhor pode me dizer qual é a acusação e qual é o crime que estou sendo acusado

— Tudo bem. Infelizmente, nesse país, até mendigo tem direitos. Vá lá. Você está sendo enquadrado, após uma investigação de mais de 300 horas de vídeos de câmeras de segurança, fotografias de policiais de campana disfarçados de coletores de lixo e vendedores de picolé, no Decreto-Lei 3.688/1941), da Lei de Contravenções Penais.

— E qual foi o meu crime, doutor?

— Entregar-se habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita".

— Sim, doutor. Fica claro a sua imaginação. Poderia até render uma crônica policial. E qual será a minha pena?

— Uma vez indiciado, apresentaremos o seu caso ao Ministério Público, com pedido de prisão preventiva. Caso o promotor aceite a denúncia e você seja julgado e condenado, sua pena pode ser de a prisão por 15 dias a três meses. Safado.

— Doutor... Antes de eu mudar de profição para me tornar ‘Imaginador’... Eu era advogado... Essa lei que o senhor está me enquadrando data do Estado Novo, liderado pelo ex-presidente Getúlio Vargas...

— Ah, que surpresa! Então você já foi um utilitário da economia social?

— Não, doutor. Eu era um carrapato.

— Como assim, carrapato?

— Eu trabalhava para empresas de ônibus que demitiam todos os seus empregados ligados a sindicatos, sempre alegando justa causa, para não ter que pagar direitos trabalhistas... Era pegajoso, doutor. Ver suas famílias definharem...

— E o que você fez, vagabundo?

— Eu denunciei as empresas... Os esquemas delas com integrantes do judiciário... Os membros do Ministério do Trabalho que aceitavam propinas para dar perda de causa aos trabalhadores que entravam na justiça... Renunciei a todas as causas e tive a ideia de ser “Imaginador”...

— Pelo visto a sua imaginação vai longe, né seu merda?

— Sim senhor. E, segundo a minha imaginação, essa lei que o senhor quer me enquadrar, conhecida como ‘contravenção de mendicância’, foi revogada há 10 anos, pela lei 11.983/2009. Portanto, eu sou ficha limpa para imaginar o que eu quiser e bem entender por tempo indeterminado. Doutor... O senhor parece que já passou da idade de se aposentar... O Código Penal que o senhor tem na sua mesa... Qual é a data da impressão dele?

— Hummm... 1954... Acho que lhe devo desculpas, senhor “Imaginador”....

— Sem problemas, doutor. Faz o seguinte. Vamos combinar uma coisa?

— Se for... pragmática. Tudo bem.

— Antes da sua próxima investigação com pesados custos para o erário público... Esquece o seu ‘Código Penal’. Leia um livro do Fernando Pessoa... E, principalmente..

— Principalmente o quê??

— Use a imaginação...

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https://www.migalhas.com.br/quentes/297910/mendigar-deixou-de-ser-contravencao-penal-ha-apenas-dez-anos

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>>> Jornalista, professor e poeta, Ricardo França de Gusmão, 54 anos, é detentor de vários prêmios literários. Conquistou três prêmios de reportagens sobre Direitos Humanos, dois internacionais, e um de dimensão nacional, na condição de repórter especial e professor orientador universitário. Trabalhou na imprensa escrita, TVs, assessorias de imprensa, internet e Academia. Publicou 27 livros de poesia, contos e crônicas.

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