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A MARMITA E A FOME

  • Foto do escritor: Admin
    Admin
  • 15 de out. de 2022
  • 2 min de leitura


Ricardo França de Gusmão

(Poema escrito na década de 1980)

Poema parte do livro "O POEMA QUE MORREU, EU E OUTRAS VÍTIMAS / 1a Edição (impresso) 2013. Reedição Kindle Amazon digital em 2021)

.

Nas lacunas das marmitas

caminham seres sequestrados,

substratos que nunca vimos

pois a fome nos ordena:

—Veja sempre na marmita

a comida que te sustenta,

não olhe — diz a fome —

para a morte desses homens

nem seus nomes

esquecidos,

coma — insiste ela —

é para isso que eu existo!


O fracasso desses homens

no entanto sangra,

e o vermelho

como um espelho

molha o almoço

e salga a janta.

—Não importa! — diz a fome,

com o ódio na garganta -

Eu sou forte

não admito

piedade ou esperança !


Devora também a sobra

e o vazio da marmita,

antes que a tua vida

eu também sintetize.

Eu sou mais poderosa,

portanto faça o que eu disse!


Mas a fome mais gigante

vem do fundo da marmita,

onde cem milhões de homens

enfraqueceram sem comida.


— Que se danem ! — grita a fome

bem mais forte e enfurecida —

foi com a morte desses homens

que encheu-se a tua marmita !


Mas a dor que foi deles

está dentro da bendita,

e no fundo a minha fome

também está nesta marmita!


— Não me venha —fala a fome —

com tais vãs filosofias,

muito menos com sentimentos

e idéias comunistas!

Coma logo, eu te ordeno,

a comida da marmita!


Mulheres, meninos, homens,

são imagens já sem vida,

a história de todos eles

passam tristes na marmita.

Sonhos desfeitos, desesperos,

não podem ser minha comida!


— Como ousa recusar

a vitamina do alimento?

Não poderá resgatar

com isso os mortos do sofrimento,

sem a marmita não há

vida por muito tempo!


Ora, que a morte caminha

na fome da respiração,

como o ar que se falta definha

e arrebenta de dor o pulmão,

mas se a minha marmita é farta

tem gente sem alimentação!


— Quer fazer a Reforma Agrária

no território da marmita?

Pois faça e morra de fome

depois entre na maldita!


A fome que sinto agora

é a fome da Justiça!

Não quero ser digerido

pela fome da marmita,

mastigar o meu Nome

e nem homens como comida!


— Então preserve seus fantasmas

e deixe intacta a marmita.

Seja mais um a sofrer da desgraça

dessa grande carnificina,

dos que morrem na frente dos restaurantes

subnutridos, raquíticos, sem comida.

Não vale mesmo nada

a vida dos suicidas!


Engana-se, fome, comigo.

O ato dessa coragem

é o meu maior princípio.

Nego-me a covardia

de ser meu próprio inimigo.

Não satisfazer a sua gana

não é cometer suicídio.

É aí que você se engana,

não é o fim, mas o início!


E o homem venceu a fome

mesmo de fome morrendo.

Foi morar na marmita

e hoje eu compreendo,

o mistério que doía

naquele seu sofrimento,

da sua própria fome

ele foi o alimento,

escreveu no tempo o seu nome

e a morte não está doendo.

.

Jornalista, professor e poeta, Ricardo França de Gusmão, 54 anos, é detentor de vários prêmios literários. Conquistou três prêmios de reportagens sobre Direitos Humanos, dois internacionais (Um da Sociedade Interamericana de Imprensa-SIP; e outro do Mercosul), e um de dimensão nacional, na condição de repórter especial e professor orientador universitário. Trabalhou na imprensa escrita, TVs, assessorias de imprensa, internet e Academia. Publicou 27 livros de poesia, contos e crônicas. Selo editorial: Independently published







 
 
 

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