A PROFESSORA INQUISIDORA, A ROSA DE HIROXIMA E O POEMA DO BARQUINHO AGAPITO
- Admin
- 19 de jan. de 2022
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Ricardo França de Gusmão (Memórias da minha Escola)
Aconteceu uma década pós ditadura militar: 1977 ou 1978. Eu tinha 9 anos de idade. E ingressei no Ginásio, na Escola Municipal Rodrigo Otávio Filho, em Irajá. Foi mais ou menos quando comecei a escrever poesia. Lembro que era uma criança contemplativa, reflexiva, empírica. Tímido. E o Ginásio para mim era avançar 10 degraus na escala do crescimento. Me sentia muito importante, portanto.
Na primeira aula que tive, de Português, a professora Sônia me encantou. Nome verdadeiro. História verdadeira. Ela levou para sala um rádio-gravador portátil. E nos apresentou à uma música: Rosa de Hiroxima, letra de Vinícius de Moraes, interpretada por Ney Matogrosso, à época, no grupo Secos e Molhados.
Eu pude sentir o perfume da rosa. De uma rosa impregnada de sofrimento. Eu consegui sentir isso. Os versos fortes me marcaram como lâminas. “Pensem nas crianças/Mudas telepáticas/Pensem nas meninas/Cegas inexatas/Pensem nas mulheres/Rotas alteradas (...)”.
Quando a música terminou, Dona Sônia explicou a metáfora do poema. “Gente, essa rosa, não é a rosa que nós conhecemos. Não é uma flor. Ela é a bomba atômica que devastou a cidade japonesa de Hiroxima. E, depois, Nagasaki. A rosa é uma metáfora, analogia ao cogumelo formada pela combustão da bomba”.
E falou de poesia. Antes de terminar a aula, ela lançou um desafio à turma. Um ‘trabalho de casa’. “Quero que cada um de vocês traga para a próxima aula um poema. Pode ser qualquer tema! Ok?!”.
Saí da escola eufórico. Mais sonhador do que antes. A poesia era a criptografia da minha alma. E a Dona Sônica sabia ler essa criptografia. Passei a semana escrevendo, rabiscando. Rasgando rascunho. Até que – até hoje não sei por quê!! – peguei o álbum do Walt Disney, uma coleção de figurinhas que marcou a minha geração. Eu e meus irmãos conseguimos completá-lo. Então vi um personagem sem fama. Quase um anônimo no meio de feras como o Michey, o Pateta, o Pato Donald...
Era um barquinho chamado ‘Agapito’. Ele tinha uma carinha na chaminé a vapor, que apitava. E o Agapito foi o tema e o título do meu poema. Manuscrito mesmo. No caderno. Ao terminar o último verso, uma onda de orgulho me ensimesmou. Agora sim. Fiz por onde estar no ginasial. E a segunda aula de Literatura iria me credenciar com o título de poeta da turma 501 (5ª série).
Dona Sônia chegou em meio a uma expectativa geral. Havia algo de espera no inconsciente coletivo dos meus colegas. “Então gente. Vocês fizaram o nosso dever de casa?”. Silêncio. Ela insistiu. “Quem fez levanta o dedo!”. E levantei. Olhei para os lados. Mais ninguém. Então era eu e o Agapito.
— Eu fiz professora!
— Que bom meu filho. Qual é mesmo o seu nome?
— Ricardo, professora.
— Então, Ricardo, pegue o seu poema e traga aqui na minha mesa para eu ver.
Eu levei o caderno. E permaneci à espera da resposta da Dona Sônia, a seu lado. De frente para a turma. Ela leu atentamente. E sua face foi ficando congelada. Num estado de seriedade. Após ler, ela olhou para mim. Era o momento que eu esperava. Agora ela iria pedir para eu ler o poema em voz alta, para a turma. Mas não.
— Garoto — Já não era mais o Ricardo — foi você mesmo quem escreveu esse poema??
— Sim professora... – Respondi, agora meio confuso. Algo estava acontecendo. Ela aumentou a voz:
— Garoto, você sabe o que é plágio???
— Não, professora...
— Sabia que plágio dá cadeia???
— Não professora... O que é plágio? – Perguntei. Mas desde aquele momento, plágio devia ser um palavrão, uma coisa muito grave. E tive medo da resposta. Mas afinal, o que eu havia feito de errado?
— Você sabia que copiar poema dos outros é plágio??
— Não, professora. Mas acho que isso é errado... Se eu sei escrever poesia, por que iria copiar de alguém uma coisa que eu sei fazer?
— Olha, eu vou averiguar! Se eu descobrir que você copiou isso de alguém, vou te levar para a direção da Escola! – Terminou arrancando a folha, com o poema, do meu caderno. Eu não tinha cópia.
Sentei envergonhado. Meio que desviando dos olhares agora de desconfiança. Como se me acusassem de um crime. Baixei a cabeça. Mais tarde, no banheiro da escola, chorei pela primeira vez. Um choro com soluços. Chorei calado. Sem entender ainda. Agora sem o meu poema do Agapito, confiscado. Um poema seqüestrado. Um poema nunca lido.
Passou o ano. Repeti a 5ª série. Depois repeti a 7ª série. E a 8ª série. Mas consegui me formar. Nesse meio tempo, ganhei um campeonato de xadrez para a Rodrigo Otávio Filho, e um festival de música entre escolas do 13º DEC. Além de concursos de poesia na Biblioteca Popular de Jacarepaguá, em Praça Seca,. Zona Oeste dói Rio.
O tempo foi-se no vento. Continuei a escrever poesia e a vencer concursos de poesia e redação. Um deles no Colégio Souza Marques, em Campinho.
O tempo foi-se no vento. Agora estava cursando Comunicação Social, Jornalismo, na Universidade Gama Filho. Seria jornalista! Na Gama Filho, cursei um ano com bolsa de estudos 100% por ter vencido um concurso de poesia em comemoração aos 50 anos da instituição, o “Cinquentão”.
Certa noite, no campus, quem encontro? Dona Sônia. Imediatamente me veio a imagem do Agapito. Me vi na mesinha de centro lá de casa, escrevendo o poema confiscado. Só que agora o “garoto” já tinha um nome...
— Oi, professora. Se lembra de mim?
— Acho que não...
— Fui seu aluno, no ginasial.
— Tive tantos alunos...
— O meu nome a senhora lembra sim. Me chamo Ricardo França.
— Ah... Oi, há quanto tempo... Faz o que aqui?
— Jornalismo. E a senhora?
— Direito.
— Direito?? Que bom. Por falar em Direito... A senhora já pesquisou?
— Pesquisei o que?
— Se o poema que eu escrevi, após a aula sobre a Rosa de Hiroxima, chamado Agapito, personagem de Walt Disney... Era plágio? Lembra, aquele crime que dá cadeia?
— Não. Não sei do que você está falando.
— Pois então. A senhora pegou de forma coercitiva, o original do meu poema. Não tinha feito cópia. A senhora levantou, em público, na frente dos meus colegas de turma, se eu havia cometido o crime de plágio. A senhora abusou da sua condição de professora. Me humilhou. Eu poderia ter parado de escrever. Mas graças a Deus, esse dom até hoje carrego. E por conta disso, faço jornalismo. E a senhora? Eu respondo. A senhora nunca mais faça isso com “garoto” nenhum. Por que se eu souber, eu irei denunciá-la. Numa bela reportagem, no jornal dos estudantes aqui da faculdade. Siga o seu caminho. Porque apesar de você, eu segui o meu.
O tempo foi-se no vento. Nunca mais vi ou ouvi falar da dona Sônia. O poema do Agapito deve ter sido engolido por uma lixeira. Nunca entendi o porquê, o motivo da atitude dela.
O tempo foi-se no vento. Fui contratado pelo jornal O DIA, ganhei dois prêmios internacionais de jornalismo. E um nacional, categoria acadêmico, como professor orientador de uma grande reportagem sobre prostituição, realizada por 40 alunos das primeiras turmas de jornalismo da Universidade Estácio de Sá, em Nova Friburgo.
O tempo foi-se no vento. E o álbum do Walt Disney permanece comigo. Completo. Com a figurinha do barquinho Agapito apitando nele.
FIM
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