
Ricardo França
14.3.2020
(*Hoje, dia 14 de março de 2020, o dia amanheceu assim, em frente ao número 85 da Rua Caiabu, em Vaz Lobo. Em frente ao Sítio dos Franças. A árvore da minha infância, plantada pelo avô Benedito, morrera, após cerca de 85 anos de vida. O nome do vão que em seu lugar ficou, chama-se recordação. Como se ainda estivesse lá, em esplendor. É assim que os cupins devoram as vidas. Temos que ter cuidado e muito medo dos cupins. RF)
Há uma coisa por aí que anda matando mais do que vírus.
Hoje de manhã foi a minha árvore de infância.
Disseram que foram cupins. Mas não havia cupins nela.
Vez em quando sinto uns solavancos.
Um empuxo fora do mar e da piscina.
Pessoas desaparecidas.
Desaparecimentos sem pessoas.
Coisas estranhas estão acontecendo por aí.
A porta do meu vizinho de prédio abre às 3h30 da madrugada.
Mas não ouço passos na escada.
Boca fechada não entra mosca.
Boca mascarada previne vírus.
Boca que fala demais é gentilmente amordaçada.
Há proliferação de moscas varejeiras
dentro dos freezers, das geladeiras.
A água insalubre.
O ar poluído.
O sarampo.
Estamos mantendo o hábito de mantermos distância.
Por economia de vida.
Mas a morte está em alta na bolsa de valores.
E há gente morrendo de morte de avião,
de morte do coração, de morte de execução,
de morte de exclusão, de morte de julgamento,
de morte de catarro engasgado
por falta de cuspe.
Temos que reaprender a cuspir.
É uma sobrevivência política-humana-eleitoral.
Peguem os termômetros, estetoscópios,
os giroscópios, os ópios
antes que o óbito
pinte a sua cara mortuária.
Passar mal está cada vez mal ficando normal.
Beijo foi proibido no carnaval.
Dê 'stop' em suas opiniões e convicções.
Peixe morre pela boca.
Gente morre pela boca.
Cale a boca!
Vitamina C e cama.
Calma.
Não geme. Não treme. Não se denuncie.
Eles sabem, eles notam,
eles são treinados pela CIA e FBI.
Fizeram pós-graduação em milícia,
cursos na Yakusa, máfia russa,
com traficantes mexicanos,
tomaram conta da arte da política,
afilhados das eminências pardas.
E chamam as mulheres de putas.
Contudo não denuncie o seu medo,
o seu pesadelo, essa coisa estúpida
que provoca falta de ar.
Estão sendo abertas lojas que vendem
'caras de paisagens' e álcool gel.
Luta, não tom a cicuta de Sócrates,
cianureto alemão,
cerveja caseira de São João de Meriti.
Troca o chip do celular.
Não deixa sua mãe nervosa.
Disfarça com rosas. Dê-lhe rosas.
Mas amor não faça nunca mais
com mulher alguma.
Mas amor não faça nunca mais
com homem algum.
Qual a certeza que você tem
que o seu nome é o seu nome mesmo?
Foi você que enviou aquela mensagem de texto?
Há uma coisa por aí.
Gavetas vasculhadas.
Luzes acesas em escritórios na madrugada.
Maldades eleitas.
Legitimadas.
Defendidas.
Ungidas.
Religiosizadas.
Quer paz, amigo, amiga?
Falsifiquem um passaporte
para a Amazônia que não é mais nossa.
Rouba uma vaca do agronegócio.
Varram seus passados para baixo do tapete.
Depois queimem o tapete.
Raspem suas digitais.
Não olhem mais para o céu.
Há satélites nas estrelas e na lua
que vigiam
a paz das pessoas.
E suas agonias.
Teatraliza um choro no velório do gangster.
Faça selfies com seu cadáver.
Será prova de vida na hora do coice.
Do coice dos cupins, tidos como os
assassinos da árvore da minha infância.
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