
Ricardo França de Gusmão
28.10.2022
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— O que houve, senhor presidente de seção? Por que parou a votação?
— Não sei, ainda, exatamente, senhor. Técnicos da Justiça Eleitoral já estão analisando a urna. Parece que ela apresentou um defeito técnico...
— Ora, mas isso é péssimo para a reputação eleitoral deste segundo turno! Nós testamos todas as urnas com antecedência, por que essa está com ‘defeito’?
— Senhor, sou presidente de seção voluntário. Porém, minha profissão é psicólogo... De gente, é claro, não de urna, mas acho que elas passaram por uma pressão pré-eleitoral muito grande e estressante.... Tentaram de todo jeito tirar a reputação delas... Assédio moral até as máquinas sentem. Em especial, as democráticas.
— Prezado... O senhor é psicólogo de gente. Estamos falando de uma máquina.
— Pois máquinas somos, senhor....
— Tudo bem. Não entrarei nesse debate filosófico improdutivo. Sequer inteligência artificial elas têm....
— Senhor... Sei que a fila para votação está grande. A seção está parada. Eu fiz uma pré-avaliação não técnica informatical da nossa urna....
— E qual o diagnóstico você tem?
— Chefe.... A nossa urna está com depressão.
— Depressão????
— Sim. E a urna da seção do nosso lado me parece apresentar sintomas de bipolaridade... A da outra seção... Síndrome do pânico...
— Meu deus! Isso pode interferir no resultado das eleições!
— Sim senhor, meu chefe.
— E o que o senhor aconselha?
— Bom... Acupuntura elétrica em seus dínamos. E uma equipe especializada em elogios de reputação sequenciais nas próximas duas horas.
— Mas isso irá atrasar o resultado das eleições!
— Sim. Vai sim. Porém, será melhor do que a imprensa saber que urnas da Justiça Eleitoral estão com depressão, síndrome do pânico e transtorno bipolar devido a ataques feitos por agentes externos de extrema direita.
— O senhor não precisa ser tão exato e taxativo.
— E como o senhor quer que eu classifique uma urna que morde o dedo do eleitor? Ou que cuspa na cara dele? Aliás... Nem sei por onde ela consegue essa canalização salival. Acho que o ambiente aqui está um tanto quanto tóxico. Isso afeta os circuitos eletrônicos delas.
— Minha nossa! Chegou a esse ponto?! Pois então vamos fazer tudo na surdina. Vê se trata dessa urna e das outras que apresentarem distúrbios mentais sem que a imprensa e a população saibam.
— Mas senhor? Devemos manter segredo do efeito que resultou do massacre psicológico insano que elas sofreram? Sob o estigma de que não eram confiáveis?
— Isso não cabe a nós. Somos apenas operários do sistema eleitoral. Não quero nas minhas seções urnas passando mal pois isso é mi-mi-mi pandemia da democracia. Só faltava essa. Urna ‘enlouquecida’!
— Tudo bem, senhor. Advirto, no entanto, que algumas delas mordem. Cuidado ao colocar a digital do seu dedo... Evita o 22... Ele está dando medo. Já foram registradas 234 decepações.
— Pois muito bem. Com certeza isso deve ser um vírus muito agressivo. Acalma elas. E, é bom lembrar. Nada de laudos. Está entendendo? Laudo é prova. Documento. E faça cara de paisagem quando algum eleitor vier reclamar da demora na fila. Vamos defender a democracia. Ela é perfeita. E urna não pode dar chilique.
— Senhor, por favor, fale baixo... Elas podem escutar...
— Eu estou começando a acreditar que o louco aqui é você.
— Pense o que bem entender. Voltarei ao meu trabalho.
— E que trabalho? Sem urna.
— É exatamente esse trabalho. Irei conversar com os outros presidentes de seções para reunir todas aqui. Como em um berçário da democracia. Irei cantar músicas para acalmá-las.
— E que músicas, senhor psicólogo? Da Anita?
— Não senhor. Jingles da campanha do Lula. As urnas também precisam de um pouco de paz.
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